“Ler não é caminhar nem voar sobre as palavras. Ler é escrever o que estamos lendo e perceber a conexão entre o texto e o contexto e como isso se vincula com meu contexto.”
Paulo Freire
“Os livros infantis e juvenis têm sido objeto de atenção e polêmica desde seu nascimento como fenômeno cultural no século XVIII.” Assim Teresa Colomer, uma das maiores referências mundiais em pesquisa sobre as relações entre literatura e infância, abre seu “A Formação do Leitor Literário”. Ela explica a importância que bibliotecas públicas exerceram e ainda exercem na ampliação do serviço voltado à atenção das crianças. Segundo suas pesquisas, as bibliotecárias, mulheres muito cultas, foram por décadas a principal influência no desenvolvimento das experiências de difusão da leitura entre crianças. Os primeiros estudos críticos e teóricos de grande influência sobre literatura infantil e juvenil surgiriam mais à frente, nos primeiros anos do século XX. Foi a partir da Segunda Guerra Mundial que as reflexões sobre livros e bibliotecas públicas se tornaram cada vez mais presentes e relevantes.
No Brasil, é impossível falar sobre literatura voltada para crianças sem mencionar a sólida contribuição que os estudos de Leonardo Arroyo, organizados em seu livro Literatura infantil brasileira, trouxeram para o campo. Citando, por exemplo, Anton Makarenko e Monteiro Lobato, Arroyo defende a presença da alegria nas obras destinadas às crianças. Ele cita, ainda, Alceu Amoroso Lima para quem o livro para criança deve ser um meio de estimular o instinto vital, povoar-lhe a imaginação, de provocar-lhe a personalidade. Nas quase quatrocentas páginas resultantes de sua pesquisa, Arroyo recusa quaisquer funções moralistas à literatura infantil.
Marisa Lajolo e Regina Zilberman são, inquestionavelmente, as pesquisadoras brasileiras que mais publicaram livros e artigos sobre as relações entre leitura literária e infância. Seus estudos são um terreno seguro e de vital importância para aqueles que buscam conhecer a evolução das várias perspectivas que a literatura infantil assumiu, dentro das escolas e fora delas, nos últimos cinquenta anos no Brasil.
Seja neste século ou no passado, seja no Brasil ou fora daqui, há uma ideia essencial que liga todos aqueles que se dedicaram e se dedicam a estudar a literatura
voltada para a infância: o princípio de que esta literatura se (des)constrói a partir das ideias sociais que cada tempo e lugar têm do que vem a ser infância.
A literatura chega à maioria das pessoas através cantigas de ninar, contações de história e outros gêneros da oralidade. É na escola, porém, que a literatura, majoritariamente em sua forma escrita, será uma ponte lúdica entre os símbolos subjetivos da imaginação de cada criança e os signos convencionais da cultura letrada em que ela passa a estar inserida. Quando buscamos nossas primeiras memórias de leitura, elas quase sempre trazem consigo a figura de uma professora da Educação Infantil ou dos Anos Iniciais do Fundamental. Isso ocorre mais fortemente se essas primeiras experiências de leitura aconteceram em torno de um livro de literatura, aquele que a nossa infância chamava de livro de histórias ou livro de ler, para diferenciá-lo dos didáticos livros de aprender.
Minha primeira memória de leitura me leva ao jornal que meu vizinho lia na área de sua casa, mas minhas primeiras experiências de leitura literária se deram no ambiente escolar, em um lugar incrível chamado “biblioteca”. Tínhamos livros em casa, mas eram como enfeites na estante, pesados, com suas capas duras e suas letras douradas. Eles ficavam nas prateleiras altas, e em toda minha primeira infância jamais vi um adulto retirar qualquer um deles para ler. Eles saíam de lá, eram limpos e voltavam para lá. Meus pais sempre me falaram da importância dos estudos e da leitura, mas não da literatura em especial. Eu decodificava e lia rótulos, revistas, jornais, camisetas, sacolas de supermercado, letreiros, placas, mas não tinha livros ao meu alcance. Ali, comecei a sonhar que teria muito livros: “vou ter 5 mil livros, ou melhor, 100 ou até 6 dúzias”, eu planejava, com minha própria matemática.
Anos mais tarde, a biblioteca da escola passaria a ser um dos meus lugares prediletos no meu pequeno mundo, sobretudo (e curiosamente) nas férias, quando minha leitura não era interrompida pelo estridente sinal do fim do recreio. Nas férias, éramos apenas a tia Sandra, a guardiã das estantes, os livros e eu, descobrindo que ler literatura era diferente de ler qualquer outro escrito.
por Kátia Chiaradia
Dra. Kátia Chiaradia é mestre e doutora em Literatura pela UNICAMP-Campinas. Na UERJ, sua pesquisa de pós-doutorado focou o campo artístico-literário da BNCC. Há mais de dez anos trabalha com critérios de escolha de livros.